Pessoal que acompanha o nosso blog e nosso jornal, é com satisfação que a cada dia percebemos que o número de visitantes aqui no blog vem aumentando, espero que a cada postagem, a cada texto recebido, e a cada texto lido, possamos de alguma forma contribuir com a sua prática pela leitura, pelo interesse em escrever. Como sempre, nós mencionamos aqui o nosso interesse em receber textos, matérias, documentários, até mesmo fotos com algum teor significativo que possam ser postados aqui no blog do Jornal O Manifesto. Nosso post hoje é uma crônica escrita pelo nosso parceiro Tulio, que entre sua vida acadêmica, seu prazer pela escrita e leitura, convive com a astúcia de ser um vendedor. Cotidiano que entre histórias engraçadas, estressantes, satisfatórias e o lidar com o tratamento direto com seus clientes, resultou em uma leitura prazerosa para o fim de mais um dia de trabalho!
O caso da geladeira
O exercício do labor
comercial na cidade de Inhumas, a lida com gente de todos os tipos, as dores
de cabeça e os casos engraçados que já me afligiram como vendedor, inspiraram a
seguinte crônica;
Estávamos sentados tranquilamente conversando
sobre as possibilidades e incapacidades das armações de óculos que Geovan
mostrava a minha patroa. Eram armações que continham o que Marx diria de ideal
para o processo de ascensão do capitalismo e seu principal objetivo; ter um bom
lucro com o mínimo possível de gasto.
_ Olha Irene, é o
seguinte; armação deste preço, e dessa qualidade você não acha com mais ninguém,
sabe bem disso! Pronunciou Geovan com timbre de maestreza no que falava.
Era bem verdade que
Geovan era um mestre na arte das vendas. Já trabalhava com essa área desde que
a ótica em que trabalho abriu a mais de 35 anos atrás, e naquele tempo já era
um experiente vendedor. Geovan gozava de uma incorruptível confiança por parte
de meus patrões, e o ofício nas artes do lucro lhe era um dom inerente do
espírito. sempre que por aqui aparecia, havia de fazer estes discursos típicos
dos bons vendedores acerca da boa condição da mercadoria e das vantagens de sua
aquisição por um preço extremamente baixo, a ponto de fazer o cliente se sentir
ofendido por não ter aproveitado tão oportuna oferta, seu bom humor era-lhe
também um dom característico.
Minha patroa, no
entanto não se fez de rogada, sabia muito bem dos bons preços e das garantias
de um bom material por um valor extremamente acessível no que o velho vendedor
lhe oferecia. Mas a ciência de uma vida inteira criada no comércio havia lhe
incutido um destemido sentimento de não se satisfazer com pouco. E da mesma
forma que o cliente abusivamente diz que tal mercadoria está muito cara, apesar
disso não passar de um disparate acavalado, para que o pobre vendedor se
desmanche em um discurso venial e choroso, disposto a entrar na guerra com
grandes chances de perdê-la, também ela havia descoberto que não importa o
tamanho do bom preço, ele sempre podia cair mais um pouco. Foi então que a lábia
convincente entrou em evidência;
_ Que nada Geovan.
Abaixa mais esse preço ai, ou então não vai dar pra comprar nada, você sabe
muito bem que o negócio tá feio pra todo mundo. Entrou quase nada de
dinheiro hoje! - Disse apontando pra gaveta do cofre, de onde se prestássemos
atenção ouviríamos o cantar das garças e o nadar de algumas garoupas.
Geovan aceitou o
desafio, e sem pestanejar se embrenhou em um discurso galopante, acerca das óticas
que já tinha visitado essa semana, sobre o bom andamento do comércio e disse
tirando o seu da reta que os
comerciantes eram todos um chorões que nunca se contentam com nada.
Foi justamente
quando ele falava da boa qualidade de suas armações que entrou na loja uma
senhora, já bem idosa, e subitamente o ambiente se anuviou.
Entrou sem responder
o meu cordial boa tarde, e jogou uma armação quebrada em cima da mesa de
madeira ao cabo que pronunciava sentenciosa;
_Essas armações de
vocês não valem nada! Comprei essa aí semana passada e já quebrou, olha ai que merda
que é esse material.
Minha patroa enrubesceu. A armação havia se partido ao meio
como se alguém houvesse esquecido ela em cima de um sofá ou cadeira, e outrem
por engano se sentasse nela. Então perguntou;
_ O que aconteceu ?
A cliente se encheu de uma fúria animalesca, conveniente a
dar razão a sua versão, e disse cuspindo fogo que deixara a armação em cima da
geladeira para fazer almoço e quando voltou para pega-la já estava quebrada.
Vi o semblante de Geovan se encher de
vergonha quando ele tomando o lugar de minha patroa pegou a armação com todo o
cuidado e com olhos de ourives a examinou de cabo a rabo. Leu a marca da
armação e viu que era o seu material. A vergonha inicial foi paulatinamente
substituída por uma ira inclemente e posteriormente a uma ironia extremada, foi
quando maliciosamente ele se virou e encarou minha patroa e a mim, e na
periferia de seus aguçados sentidos percebeu que nós dois já havíamos percebido
sem precisar examinar minuciosamente na armação, que a teoria do sofá ou da
cadeira tinha total fundamento. Então aconteceu; decidido ele se virou para a
cliente e com um sorriso no rosto perguntou descontraidamente;
_ Quantos anos a senhora tem?
Pensei que a mulher fosse morrer de raiva, o que diabos
aquele raio de pergunta tinha a ver com o caso da armação quebrada?
_ Sessenta e cinco. Respondeu
quase gritando, e com um ódio nos olhos capaz de trazer morte e desesperança
para qualquer um. Mas Geovan mais calmo do que nunca murmurou;
_Puxa vida, mas pela idade da senhora, como ainda consegue?
A curiosidade da mulher se acentuou com sua raiva.
_Consigo o que? Questionou.
_ Como consegue sentar em cima da geladeira? Pronunciou o
velho mestre das vendas. Foi então que a
cliente entendeu, pegou a armação de qualquer jeito e com sua nuvem de maldição
e rancor deixou o ambiente soluçando cobras e lagartos.
Olhei para o Geovan
e para minha patroa que já estava a ponto de estourar segurando as gargalhadas
que já lhe congestionavam a garganta. Foi então que nos três caímos em um carnavalesco
festival de risos.
(Tulio Fernando)